segunda-feira, novembro 21, 2016

Vídeo revela surto semiótico-esquizofrênico que se espalha pelo País


Compenetrada e em tom de grave denúncia, um dos manifestantes que invadiram a plenária da Câmara dos Deputados na semana da passada, pedindo “intervenção militar institucional” no País, gravou um vídeo no qual aponta para um painel dos 100 anos da imigração japonesa dizendo: “cena nojenta, a nossa bandeira com o símbolo vermelho...”, numa alusão a um suposto complô comunista para alterar a bandeira nacional. Na verdade a bandeira era do Japão. E o círculo vermelho, o simbólico Sol Nascente. O vídeo da manifestante viralizou nas redes sociais como uma insólita gafe que, no máximo, provocaria apenas vergonha alheia. Porém, é mais do que isso: é um sintoma de um País doente, um surto semiótico-esquizofrênico. Patologia que, recentemente, acometeu até uma emérita professora de Semiótica que viu nas ciclofaixas pintadas de vermelho uma cilada subliminar do Comunismo em São Paulo. Originado no próprio cotidiano esquizoide das classes médias (submetidas a mensagens contraditórias da sociedade de consumo), e após ser açodada pela grande mídia para apoiar o recente golpe político, hoje a patologia espalha-se endemicamente na sociedade expondo três sintomas principais: paranoia, hebefrenia e catatonia.

Minha esposa tem uma amiga com um bom cargo Sênior na área de pesquisa em Marketing. Está na faixa dos 30 anos e vive a sua plenitude profissional, gerenciando esse setor na empresa.

Recentemente, tomou a importante decisão de adquirir a casa própria, um apartamento de 60 metros quadrados no bairro nobre de Pinheiros, São Paulo. Apesar da reduzida metragem (talvez perfeito para uma pessoa), o valor do imóvel beira a casa do milhão de reais. Financiou em 30 anos, o que comprometerá a cada mês 5 mil reais dos seus rendimentos. 

Essa é um dos paradoxos da classe média: ela diz que o apartamento é seu, mas terá que pagá-lo até chegar à faixa dos 60 anos. Não importa o que ocorra em sua vida, nos altos e baixos de toda vida profissional e pessoal, terá que pagar as parcelas do financiamento vivendo a contradição salário versus renda – enquanto o banco extrai renda do financiamento, ela paga com o salário, meio evanescente de troca.

Ela acredita que está subindo na vida, embora a propriedade (a riqueza) seja apenas uma promessa futura, submetida às contingências do destino.

Imagino o custo psíquico dessa cena contraditória à qual a classe média submete-se diariamente. Ansiedade, expectativa, angústia mesclada com esforço, força de vontade e positividade.

É a sociedade do mérito, a Meritocracia, a qual submete seus devotos a uma situação de “duplo vínculo”- a sociedade de consumo que oferece lançamentos imobiliários com “pocket forest” e “varanda gourmet” em metragens mínimas e custos máximos; imagens publicitárias que transformam de cidadãos em máquinas desejantes. Assalariados que, através de um meio evanescente de troca, sonham galgar a hierarquia social e ficar ao lado daqueles que vivem da exclusivamente da renda e do lucro.

Gregory Bateson e o conceito de "Duplo Vínculo"

O paradoxo esquizofrênico


“Duplo Vínculo” ("Double Bind") é um conceito clássico criado pelo antropólogo e psiquiatra inglês Gregory Bateson, o mais famoso membro da chamada “Escola de Palo Alto”, instituto de pesquisa mental na Califórnia que se tornou referência no âmbito da psiquiatria e terapia familiar.

Trata-se de uma situação onde a pessoa se vê diante de mensagens simultâneas e contraditórias de aceitação e rejeição (“duplo vínculo”). Esse quadro é frequente no meio familiar, e ocorre em especial entre crianças e pais. Segundo Bateson, adultos jovens que desenvolveram esquizofrenia muitas vezes têm história de relação de duplo vínculo na infância. É comum crianças ouvirem dos pais variantes de um discurso com o seguinte teor: “gostamos muito de você, mas temos de castigá-lo porque se não o fizermos você irá se comportar mal, e não queremos que isso aconteça porque queremos continuar gostando de você”.

Diante de tal paradoxo, a vítima vê-se presa num jogo que “não pode ganhar”: sem entender a metacomunicação, não consegue lidar com as complexidades do discurso (metáforas, paradoxos, etc.) desenvolvendo sintomas esquizofrênicos, ou mesmo o quadro pleno da doença.

O duplo vínculo cria uma situação externa ameaçadora para o indivíduo porque incompreensível. Como resultado a pessoa procura modificar a realidade para que ela se mostre menos ameaçadora. A consequência final pode ser a alienação mental.

Esquizofrenia e sociedade de consumo (cena do filme "Eles Vivem", 1989)

Esquizofrenia como patologia social


É claro que Bateson estudava quadros de terapias das relações familiares. Porém, estudiosos como Ciro Marcondes Filho acreditam que o conceito de “Duplo Vínculo” possa ser extrapolado para o estudo de patologias sociais dominadas por sintomas esquizoides – leia MARCONDES Filho, A Produção Social da Loucura. São Paulo: Paulus, 2003.

A sociedade de consumo e meritocrática é uma “doença contemporânea” não apenas porque cria uma cultura na qual o “ter” substitui o “ser”. O problema não é comprar, mas os significados esquizofrenicamente contraditórios que as mensagens publicitárias comunicam aos potenciais consumidores: de um lado, a afirmação universal de que todos têm o direito à felicidade e à realização dos seus sonhos, e, do outro, a situação particular de impedimento – a clivagem financeira.

Pois a publicidade e toda a sociedade de consumo criam essa verdadeira cilada comunicativa para os indivíduos: explicitamente, cada filme publicitário parece uma reivindicação universalista do direito à felicidade; mas uma contra ordem não-verbal, uma espécie de subtexto, transpassa todo o campo das mensagens publicitárias: sem dinheiro, não há felicidade.

A ameaça comunista está em toda parte?

Sintomas da patologia social


Vítima desse duplo vínculo, o sujeito não consegue criar uma metacomunicação (distanciamento) e compreender a situação paradoxal, contraditória e impossível de ser resolvida: sem compreender a cena, o indivíduo desenvolve os três sintomas clássicos esquizofrênicos:

(a) paranoia (sem compreender a mensagem contraditória, acredita que exista algum sentido oculto e, por isso, hostil),

(b) hebefrenia (padrão de pensamento concreto e infantil, incapaz de compreender metáforas, analogias etc.) e;

(c) catatonia (fecha-se no seu mundo interior). 

Três sintomas em um contexto geral de negação e alienação da realidade.

Invasão da Câmara dos Deputados: da Política ao sintoma


A inacreditável invasão da plenária da Câmara dos Deputados por um grupo de cerca de 50 manifestantes gritando palavras de ordem como “general aqui” e “intervenção militar institucional” contra a corrupção foi, tomado isoladamente, um ato político de extrema direita. Suspeita-se, incitado pelo procurador da Lava Jato, Deltan Dallagnol, atacando congressistas por estarem ameaçando as investigações e clamando pela ajuda “do povo” nas redes sociais.

Mas da política passamos para o sintoma. O impagável vídeo de uma das manifestantes denunciando o que seria “a nova bandeira do Brasil” dominada por um “símbolo vermelho comunista” em uma “cena nojenta no Congresso Nacional”. Diz apontando para um painel da comemoração dos 100 anos da imigração japonesa no Brasil em um saguão do Congresso - veja o vídeo no final da postagem.

Mensagem subliminar comunista na revista "Veja"?

Sem entender a gestalt ou simbolismo da comunicação visual (a fusão do losango da bandeira brasileira com o círculo vermelho da bandeira do Japão), entrou em um surto paranoico-semiótico, denunciando uma sinistra conspiração. “Preparem-se brasileiros... você que ainda não se deu conta... a bandeira não será mais como conhecemos...”, diz assombrada Rosangela Elisabeth Muller.

Em seu perfil do Facebook há pérolas como uma suposta mensagem subliminar de Carlos Arthur Nuzman (presidente do Comitê Olímpico brasileiro) na abertura das Olimpíadas no Rio de Janeiro. Ao invés do verde e amarelo, ele teria dito “yellow e red”... na verdade cores pertencentes à bandeira olímpica.

Esse delírio semiótico no qual um significante (a cor vermelha) se desloca do seu significado (o Sol Nascente da bandeira japonesa/união das raças através do esporte), não é privilégio apenas de anônimos patriotas convocados por um procurador para alguma cruzada épica.

Em 2014 a emérita professora de Semiótica da PUC/SP, Lucia Santaella, alertou para um suposto perigo subliminar nas ciclovias pintadas de vermelho da cidade, iniciativa do prefeito petista Fernando Haddad: “uma descarada propaganda vermelha do PT, provavelmente encomendadas do Diabo em pessoa”. Vermelho, PT, Comunismo e o Diabo, outro delírio semiótico onde o significante (cor /vermelho/) se desloca do significado (convenção simbólica de sinalização internacional das ciclovias) - sobre isso clique aqui.

Ideologias são as práticas cotidianas


Por que esse delírio semiótico? Sintoma do quê? Do tradicional anti-comunismo atiçado pela propaganda política?

Ideologias são as práticas cotidianas. Elas não nascem das propagandas políticas. Estas apenas reforçam predisposições existentes nas práticas mais comezinhas do dia-a-dia.

O delírio semiótico nasce das práticas cotidianas dos duplos vínculos vividos pela classe média que equivale à metáfora (ooopa! cuidado com metáforas) do cavalo que tenta pegar a cenoura na ponta de uma vara enquanto empurra a corroça – preso na cilada comunicativa de uma sociedade de consumo que ao mesmo tempo insufla desejos que serão imaginariamente realizados pelo salário que produz renda e lucro para uma minoria.

A cilada esquizofrênica do duplo vínculo cria os sintomas esquizoides que alimentam o atual anti-comunismo e o retro-fascismo: o padrão de pensamento hebefrênico não consegue compreender, por exemplo, a metáfora ou gestalt de um painel alusivo à imigração japonesa. Assim como vê na cor vermelha, algum sentido oculto já que não consegue entender a alusão simbólica da cor.

O que produz a paranoia em um mundo no qual a comunicação é reduzida à tábula-rasa, onde não há simbolismos ou alusões, apenas indícios de causa-efeito conspiratório.

O ponto de chegada é o delírio catatônico cujos sintomas agora tornam-se públicos e cada vez mais audaciosos depois que a grande mídia abriu a caixa de pandora. 

                   Foram úteis até recentemente, mas começam a se tornar incômodos porque os cidadãos acometidos pelo surto esquizoide-semiótico procuram agora uma tradução política que normatize a sua patologia.


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